Para uma criança de 6 anos da época, “aprender coisas” significava absorver pequenas tabuletas de informação, uma atrás da outra, e nenhuma delas parecia ter um objetivo muito claro. 4x3=12. A capital do Equador é Quito. O Brasil foi descoberto em 1500. A abelha nos dá o mel. A galinha nos dá os ovos. A vaca nos dá o leite e a carne.
Ok. Essas três últimas até tinham uma relação palpável com o mundo das coisas reais. Eu gostava de mel. E de ovos. E de leite. E de carne. Naturalmente, quis mais contexto. Papai, como a abelha faz o mel? Bem, ela pega aquele pozinho das flores, leva pra dentro da colmeia, etc etc etc. Legal. Mãe, como o leite sai da vaca? Bem, tem isso aqui nela (tetas), o fazendeiro traz um balde e blá blá blá whiskas sachê. Ah, maneiro. Até vi isso num desenho animado. Faz sentido.
Pai, como a vaca “dá” a carne?
Hrmphblgrmcomplicadodepoisvocêaprende.
Mãe, como a vaca “dá” a carne?
Pergunte pro seu pai.
Frustrante, mas ganhar esse tipo de reação já não era novidade para mim ‐ eu já tinha perguntado como os bebês nascem. Mas uma hora a verdade aparece. Se não me falha a memória, foi o fato de haver uma coisa dura dentro dos pedaços de frango e de que essa coisa dura se chamava “osso”. Não lembro se eu cheguei à conclusão por mim próprio ou se simplesmente botei um dos dois contra a parede. O importante é que eu aprendi. E foi um choque. Berrei, chorei, fiz um escândalo, disse que nunca mais ia comer carne, chamei meus pais de assassinos. Para crédito deles e sorte minha, violência não era o estilo deles e eu não levei um safanão na cara.
Por outro lado, minha militância vegana prematura teve efeito zero sobre os velhos. Declararam que era frescura e continuaram botando carne na mesa para eu comer. Disseram algumas mentiras tipo “os bichos não sofrem” ou coisa do gênero. No fim, eu acabei me acalmando e comendo o bife como todo mundo.
Corta para nove anos no futuro. Seriados enlatados dos EUA abundam na televisão brasileira. (Lembrem-se, não havia TV por assinatura nem YouTube nem NetFlix.) A maioria policiais, mas tem vários de ficção científica. Espaço 1999. Galactica, Astronave de Combate. Alguns, como Super Máquina, eram as duas coisas. E teve um em particular, mais canastrão e escrachado do que a média: Buck Rogers no Século XXV. Pra quem não se liga em ficção científica, calma que não precisa de muito contexto: o protagonista sofre um acidente que o congela, ele acorda em 2491, vive aventuras espaciais por lá, e há alguns choques culturais cômicos entre o passado e o futuro. Simples.
Homem de sorte. Ele foi poupado de Vanilla Ice.
Um episódio em particular teve uma cena marcante: Buck e um amigo estão pilotando caças espaciais, eles são atingidos mas conseguem pousar as naves avariadas num planeta. No meio de um deserto. E vai levar tempo para conseguir ajuda. O homem do futuro diz: “Como vamos fazer para sobreviver aqui? Não temos comida. Vamos morrer de fome.” Buck aponta para um roedor (um cão-da-pradaria, talvez) andando no meio das pedras e diz: “Não vamos, não.”
O amigo de Buck reage como se ele tivesse proposto canibalismo. “Você não pode estar falando sério!”
Corta para os dois em volta de uma fogueira, comendo pedaços de carne espetada em gravetos. O homem do futuro não está muito confortável, e só está comendo porque a alternativa é morrer de fome.
Ele diz: “Eu não acredito que estou comendo algo que andava e respirava. Você jura que na sua época isto era normal?”
Buck diz que sim.
“Realmente vocês eram bárbaros.”
O ano era 1980 (um ponto de inflexão no contínuo espaço-tempo, de tantas maneiras diferentes que até perdi a conta. Mas eu divago) e naquele momento houve uma ressonância com 1971. Mas sem consequências imediatas. Vida que segue.
‐ The dream is over.
‐ Ainda não, mas estamos trabalhando nisso.
O dia 28 de setembro de 2015 era um dia genérico, sem nada de especial. Uma segunda-feira de trabalho totalmente normal e sem graça. Naquele dia eu comi carpaccio num bufê de saladas num shopping. De volta ao escritório, me deu vontade de botar uma música nos fones enquanto trabalho. Eu estava com o tema de A Identidade Bourne na cabeça. Moby? Taí, vou catar músicas do Moby pra escutar.
Richard Melville (sacaram?) Hall, nascido em 11/09/1965.
Um ótimo ano para se nascer. O dia e o mês, nem tanto.
Durante a pesquisa (descrição de algum vídeo do YouTube? Não lembro) me aparece a seguinte declaração do cavalheiro:
“Ao longo da história do Ocidente, estamos lentamente reconhecendo direitos básicos para todos. Muito tempo atrás, só reis tinham direitos. Depois, brancos proprietários de terra. Depois, todos os homens. Depois, mulheres. Depois, crianças. Agora, estamos em conflito sobre direitos básicos de homossexuais e de animais. Temos que aceitar de uma vez por todas que toda criatura consciente merece ter direitos básicos. Defino ‘direitos básicos’ como a capacidade de você seguir a vida sem que alguém lhe imponha sua vontade pela força. Ou, como os redatores da Constituição dos EUA disseram, ‘Vida, Liberdade e a Busca da Felicidade’.”
É pouco? É. É só uma declaração (que alguns chamariam de santimonial, arrogante ou condescendente) de uma celebridade. O tipo da coisa que a gente lê e esquece. Mas isso se somou a 44 anos de pequenos drops de conhecimento caindo dentro do meu cérebro, e não consegui tirar da cabeça. Não, não tive uma epifania ou coisa do gênero. Naquele momento, só decidi fazer uma experiência, sem compromisso e sem qualquer grandiosidade. Pro jantar, vou fazer um prato sem qualquer carne. E na refeição seguinte também.
E assim foi. No jantar não comi carne, nem no almoço nem no jantar do dia seguinte, nem no outro, nem no outro, nem no outro… e o mais espantoso: foi fácil. Mas há outras considerações aí...