sexta-feira, 22 de junho de 2018

O Retorno da Calúnia de Sangue


(Por Paul Krugman; traduzido do New York Times. Os artigos referenciados por links estão em inglês.)

A velocidade do declínio moral dos Estados Unidos sob Donald Trump é de tirar o fôlego. Em questão de meses, deixamos de ser uma nação que promove a vida, a liberdade e a busca da felicidade, e passamos a ser uma nação que arranca crianças dos pais e as coloca em jaulas.

Quase tão notável a respeito desse mergulho no barbarismo é o fato de que ele não é uma resposta a um problema de verdade. O influxo em massa de assassinos e estupradores sobre o qual Trump fala, a onda de crimes cometidos por imigrantes neste país (e, na mente dele, por refugiados na Alemanha), são coisas que simplesmente não estão acontecendo. São puras fantasias doentias, usadas para justificar atrocidades reais.

Sabe o que isso me lembra? A história do antissemitismo, um conto de preconceito alimentado por mitos e invenções que acabou em genocídio.

Em primeiro lugar, falemos a respeito da imigração para os EUA nos tempos atuais, e comparemos com essas fantasias doentias.

Existe um debate entre economistas, altamente técnico, sobre a influência de imigrantes de baixa escolaridade — se ela exerce ou não um efeito de redução salarial sobre trabalhadores nativos de escolaridade igualmente baixa. (A maioria dos pesquisadores acha que não, mas há algumas discordâncias.) Mas esse debate não tem nenhuma influência nas políticas de Trump.

O que essas políticas refletem, sim, é uma visão do "Massacre Americano", de grandes cidades tomadas por hordas de imigrantes violentos. E essa visão não tem qualquer relação com a realidade.

Para começar, não obstante uma pequena subida desde 2014, os números do crime violento nos EUA estão em baixas históricas — a taxa de homicídios está nos mesmos níveis do início dos anos 60. (Na Alemanha, a propósito, as taxas de crime também estão historicamente baixas.) O tal "massacre" de que Trump fala só existe na imaginação dele.

É verdade que existe uma correlação entre crime violento e incidência de imigrantes não registrados — mas é uma correlação negativa. Ou seja, lugares onde há muitos imigrantes, sejam legalizados ou não, tendem a ter taxas de crime excepcionalmente baixas. O exemplo mais flagrande desse "desmassacre" é a maior cidade de todas: Nova Iorque, onde mais de um terço da população nasceu no estrangeiro, e o número de imigrantes irregulares provavelmente chega a meio milhão — lá, o crime está reduzido a níveis nunca vistos desde os anos 50.

O que não deveria ser surpresa, já que os dados de condenações criminais mostram que imigrantes — legais ou não — tem uma probabilidade significativamente menor de cometer crimes do que a população nativa.

Portanto, o governo Trump aterroriza famílias e crianças, abandonando todos os critérios de decência e humanidade, como resposta a uma crise que nem sequer existe.

De onde vem esse medo e ódio a imigrantes? Muito disso parece ser medo do desconhecido: os estados mais anti-imigração parecem ser aqueles onde quase não há imigrantes, como a Virgínia Ocidental.

Mas esse ódio virulento não é uma coisa de "caipiras ignorantes". O próprio Trump é, claro, um nova-iorquino rico, e muito do financiamento de grupos anti-imigração vem de fundações controladas por bilionários de direita. Por que pessoas ricas e bem-sucedidas odeiam imigrantes? Volta e meia me pego pensando em Lou Dobbs (N. do T.: âncora e comentarista de TV, atualmente na Fox Business), de quem eu gostava no início dos anos 2000, mas que se tornou um anti-imigracionista raivoso (e íntimo de Donald Trump) e atualmente fala de um "complô pró-imigração dos lobistas de Washington".

Não sei o que impulsiona essas pessoas. Mas já vi esse filme antes, na história do antissemitismo.

O X da questão do antissemitismo é que nunca foi sobre algo que judeus tenham realmente feito. Sempre foi sobre lendas escabrosas, frequentemente baseadas em mentiras deliberadas, sistematicamente espalhadas para fabricar ódio.

Por exemplo, durante séculos pessoas têm repetido a "calúnia de sangue" — a alegação de que judeus sacrificavam crianças cristãs como parte do ritual de Pessach.

No início do século 20, foi maciçamente disseminado um texto chamado "Os Protocolos dos Sábios do Sião", que detalhava um suposto plano de dominação mundial por parte dos judeus, e que provavelmente foi redigido pela polícia secreta da Rússia czarista. (A História se repete, primeiro como tragédia e depois como mais tragédia.)

Esse documento falso foi amplamente divulgado nos EUA graças a ninguém menos do que Henry Ford, um antissemita virulento que encomendou a publicação e distribuição de meio milhão de cópias da tradução em inglês, cujo título era "O Judeu Internacional". Mais tarde, Ford se retratou por ter publicado uma falsificação, mas o estrago estava feito.

Mais uma vez, por que alguém como Henry Ford — não apenas rico, mas um dos homens mais admirados do seu tempo — escolheria um caminho desses? Não sei. Essas coisas simplesmente acontecem.

De um jeito ou de outro, o que é importante entender é: as atrocidades que nosso país está cometendo não são uma reação exagerada ou equivocada a algum problema que precisa ser resolvido. Não existe crise de imigração. Não existe crise de criminalidade de imigrantes.

A verdadeira crise é a onda de ódio — um ódio irracional, sem qualquer relação com algo feito pelos seus alvos. Qualquer um que justifique esse ódio — por exemplo, com um argumento do tipo "ambos os lados" — está, em essência, defendendo crimes contra a humanidade.

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