quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Lembram da Reserva de Mercado em Informática?

Basileu Xilóforo, que sabe das coisas, lembra. O texto não foi tirado do blog dele, e sim do Orkut. Como textos em comunidades do Orkut são, digamos, voláteis, estou preservando as considerações do nobre colega aqui:
Como o assunto tem muitos antecedentes, conseqüências e ramificações, vou começar pela observação postada pelo recente “visitante”, deixando o resto para possíveis perguntas.
Fernando Collor, por exemplo - apesar de ter feito muitas coisas maravilhosas por nosso país, como acabar com o protecionismo no mercado de informática, que me permite usar um computador Core 2 Duo, em vez de um COBRA 0,5 microprocessador
A frase, mesmo curta, contém vários enganos gritantes. Para começar, relembra um argumento comum do PIG da época, usado para sensibilizar a classe média: o de que os microcomputadores vendidos no Brasil eram caros por causa da reserva de mercado, e deixaram de sê-lo quando Collor “acabou com a reserva”. Uma década depois, argumento similar seria usado para justificar a privatização das empresas de telecomunicações, procurando-se convencer o público de que os telefones, principalmente os celulares, eram poucos e caros porque as empresas do setor eram estatais.

Para começar, reserva de mercado e protecionismo não são a mesma coisa. O protecionismo existiu durante muito tempo para a maioria dos setores industriais, principalmente na forma de elevados impostos de importação e, em alguns casos, de proibição pura simples de importação de determinados produtos. A finalidade dele, em parte, era proteger indústrias instaladas no Brasil, mesmo em setores que eram praticamente dominados por multinacionais, como os setores automobilístico e eletro-eletrônico. Uma conseqüência positiva era a preservação do emprego nesses setores, mas, como sempre acontece, a conta era paga pelo consumidor, na forma de produtos mais caros do que os equivalentes alhures. Em parte, por outro lado, o protecionismo, contribuindo para reprimir as importações, ajudava a equilibrar as contas externas.

A principal ação do governo Collor, quanto a isso, foi baixar os impostos de importação, na maioria das áreas. O objetivo era combater a inflação, que se tinha tornado um problema maior que o desequilíbrio das contas externas. Quanto a estas, a aposta do governo Collor foi que não se desequilibrariam ainda mais, com a demanda por importações sendo limitada pela recessão trazida pelo Plano Collor. De fato, a dívida externa não disparou, mas a inflação também não foi contida.

A reserva de mercado em Informática ia além do protecionismo convencional. O conceito era de que não bastava proteger a indústria instalada no Brasil, mas era preciso proteger especialmente a tecnologia nacional, abrindo empregos não apenas de mão-de-obra operária, mas também ampliando as oportunidades para a engenharia nacional. Quando a reserva foi implantada, no início do governo Geisel, procurou-se aproveitar as lições aprendidas com sucessos então recentes nos setores de aeronáutica e telecomunicações (assuntos que também são interessantes, mas em que não vou me alongar no momento).

O agente inicial da reserva era a CAPRE, antecessor remoto da atual SEPIN (Secretaria de Política de Informática), hoje no MCT, mas, naquela época, no Ministério do Planejamento. Além das taxas de importação, que existiam para todos os setores da economia, a CAPRE devia aprovar as importações de bens de Informática e, para isso, estabeleceu regras que, em alguns setores, não permitiam a concorrência de produtos importados com aqueles produzidos no Brasil. Além nisso, nesses setores, as indústrias protegidas não eram aquelas simplesmente instaladas no Brasil, mas aquelas com controle de capital nacional. Os insumos, como placas e componentes, também deveriam ter a importação aprovada pela CAPRE.

A reserva funcionava de maneiras diferentes para diferentes setores. Os computadores de grande porte (mainframes) não estavam incluídos, e continuaram a ser vendidos normalmente. O setor onde ela teve mais repercussão foi o de minicomputadores, que, naquela época, ocupavam o espaço atual dos servidores de médio porte (considerando-se que as redes, na época, eram rudimentares). Nesse, além da reserva para empresas de controle nacional, a CAPRE controlava os contratos de transferência de tecnologia. A COBRA, empresa de controle estatal, foi autorizada a contratar tecnologia inglesa para computadores de controle de processos, destinados inicialmente a uso militar, e desenvolveu uma linha de computadores de uso comercial, baseada em tecnologia desenvolvida em universidades (o hardware na Poli-USP e o software na Informática da PUC do Rio). Três empresas privadas foram autorizadas a licenciarem tecnologia estrangeira. Note-se que essa categoria de computadores estava, em qualquer parte do mundo, acima da faixa de preço dos computadores pessoais, e era usada por empresas.

O caso dos microcomputadores era outro (lembrando, a propósito, que microprocessador é apenas o componente principal, não só dos microcomputadores, mas também de controladores embutidos, isto é, usados dentro de outros equipamentos e sistemas de qualquer natureza). Durante os anos 70, principalmente a partir da segunda metade, os microcomputadores de uso pessoal usavam microprocessadores de 8 bits, como os antigos Apple, Atari e Amiga. A montagem de um microcomputador desses estava ao alcance do hobbista individual, e, de fato, no Brasil como no resto do mundo, alguns desses hobbistas acabaram fundando empresas fabricantes de microcomputadores. Já nos anos 80 os microcomputadores de 16 bits passaram a dominar tanto o mercado de uso pessoal como parte do mercado de uso profissional. A restrição principal que a reserva de mercado impunha era de que esse setor era reservado para empresas de controle nacional, mas, não havendo necessidade de licenciamento de tecnologia de hardware, podia entrar no mercado qualquer empresa que satisfizesse a essa restrição. E, de fato, em poucos anos um número considerável de empresas nacionais entrou nesse segmento.

Os preços relativamente elevados em relação ao mercado internacional, no setor de microcomputadores, portanto, não decorriam de falta de competição no setor, mas do protecionismo que vigorava também em muitos outros setores, como o automobilístico, aberto às multinacionais e que, por sinal, recebeu alguns dos impropérios mais ruidosos do Collor. Decorriam, principalmente, das elevadas taxas de importação sobre os insumos do setor.

Quando Collor reduziu as taxas de importação e eliminou a reserva para empresas de controle nacional, já enfraquecida no governo Sarney, ela já tinha cumprido boa parte de seus objetivos de fortalecer a tecnologia nacional da área. Tanto é assim, que algumas das empresas que se desenvolveram à sombra da reserva continuam bem, obrigado. A COBRA, hoje controlada pelo Banco do Brasil, continua ativa. Meu laptop atual é da Itautec, uma das líderes do mercado de microcomputadores na época da reserva. Algumas empresas dos setores de sistemas embutidos, como controladores de sistemas de telecomunicações e de automação industrial, para as quais a reserva foi essencial inicialmente, sofreram mais com outros problemas de economia do que propriamente com o fim da reserva, nos anos 90. Algumas se associaram com multinacionais, mas o desenvolvimento de tecnologia no Brasil continua. As próprias multinacionais da área, como a Google e a IBM, passaram a ter divisões importantes de desenvolvimento no Brasil, coisa que não acontecia antes da reserva.

E esse sempre foi, pelo menos no entendimento de quem participou desse processo como integrante da comunidade acadêmica, o objetivo da reserva de mercado: abrir um espaço para a tecnologia, ou seja, para a inteligência nacional. O espaço para o capital nacional foi apenas um meio, não um fim.