quinta-feira, 1 de novembro de 2012

As Águas

Há trinta anos, completava-se a destruição de Sete Quedas, alagada para a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu.

Na época, Luís Fernando Veríssimo escreveu esta crônica. Lê-la foi como levar um soco na boca do estômago.

(Obrigado à Larissa, da comunidade LFV do Orkut, pela transcrição, e ao Lisias Toledo da turma retrocomputeira pelo scan.)

As Águas

Começou numa banheira na península do lago, em Brasília.

Uma senhora do primeiro escalão enchera uma banheira para um banho de espumas - era véspera de feriado nacional - e, quando fechou a torneira, a água não parou de jorrar. Quando o bombeiro chegou a água já alagara o banheiro e o quarto do ministro. E continuou a jorrar, apesar de todas as frenéticas providências do bombeiro. Invadiu a parte social do casarão. Empapou os carpetes. Passou para a rua. Correu para o lago.

O ministro só ficou sabendo quando chegou em casa e viu sua poltrona predileta, seus chinelos e seu cachorro boiando no jardim.

O que estava acontecendo?

* * *

No segundo dia, enquanto a água ainda jorrava misteriosamente da torneira do ministro, num apartamento de Brasília alguém pediu um pouco de água de sifão no seu uísque. O mordomo apertou a válvula do sifão. Saiu um jato tão forte que derrubou o copo de uísque. O sifão pulou da mão do mordomo.

Não parava mais de jorrar água do sifão. O sifão rodopiava no chão como um buscapé, espirrando água para todos os lados. As pessoas tiveram que fugir do apartamento alagado.E a água foi atrás. Escorreu pelas escadas. Ganhou a rua. Dirigiu-se, como um rio, para o lago. E o sifão rodopiando, expelindo água. Galões e galões de água gaseificada saíam da pequena garrafa.

Inexplicavelmente.

* * *

No terceiro dia, em outra casa da península do lago - enquanto a primeira torneira ainda jorrava e o sifão ainda cuspia água para todos os lados - as pessoas notaram que as paredes começavam a ruir. Primeiro foi só a umidade, coisa rara em Brasília. Depois gotas. Finalmente, torrentes de água descendo pelas paredes. A água acumulava-se no chão, corria para a rua, depois para o lago. Em pouco tempo a própria casa - uma mansão, embora do segundo escalão - foi erguida das suas fundações pelas águas e carregada para o lago, sob o olhar atônito dos seus ocupantes.

E ninguém sabia por quê.

* * *

No quarto dia - enquanto a torneira jorrava e o sifão rodopiava e das fundações da terceira casa brotava água aos borbotões - a notícia já se espalhara por todo o país e as explicações apareceram. Era óbvio que Brasília fora construída sobre um insuspeitado lençol de água que, por alguma razão, começava a aflorar. Mas como se explicava o sifão? E a torneira que continuava a jorrar mesmo sem água nos canos? E por que foi que naquele quarto dia a própria caixa d'água do Palácio começou a vazar, e a água a escorrer pelas paredes executivas, e a correr para a rua, e para o lago?

Ninguém sabia por quê. E veio o pânico.

* * *

No quinto dia - a torneira jorrando, o sifão golfando, a vertente borbotando, a caixa d'água transbordando - havia terror em Brasília. Ninguém ousava tomar banho ou abrir uma torneira ou uma garrafa. As autoridades advertiam: ninguém toque em água até que tudo se esclareça. Ninguém faça buracos no chão. Ninguém assoe o nariz. Ninguém urine. Ninguém... Mas um jardineiro, que não sabia de nada, foi visto encaminhando-se para a chave que fazia funcionar os dezessete "sprinklers" que regavam um gramado ministerial.

Antes que pudesse ser detido - "Meu Deus, segurem ele!" - acionou a chave.

E dezessete vulcões de água eruptiram no chão de Brasília. E as águas correram para o lago.

* * *

- Sete Quedas... - disse alguém sombriamente, no aeroporto, esperando uma desistência num dos vôos lotados que partiam para lugares mais secos.

- Como, Sete Quedas?

- Você não vê? O lago está subindo. Recebe água de cinco novas vertentes. Uma por dia. Faltam duas. Em uma semana o lago cobrirá Brasília. Como o lago de Itaipu cobriu as Sete Quedas.

- Bobagem.

- Retribuição...

E foi ver se seu nome estava mesmo na lista de espera.

* * *

No sexto dia, do centro da Catedral, como de um poço de petróleo, saiu um jorro de água que subiu quinhentos metros. Começou a evacuação da cidade.

* * *

Um profeta passeia de caiaque por entre as antenas de televisão, na peninsula submersa.

- Limpem, águas. Limpem tudo. Lavem a alma da república!

E as águas subindo.

* * *

No sétimo dia correram lágrimas dos olhos de bronze do Juscelino. Era a sétima vertente. Em pouco tempo o lago cobriu tudo. Equipes de salvamento ainda tentaram resgatar alguma coisa da fauna do lugar que não fugira a tempo. Um repórter político e um lobista foram encontrados agarrados ao corpo inchado de um cavalo que flutuava, e salvos. O chapéu do Brossard desapareceu num redemoinho.

* * *

Só os dois edifícios do Congresso ficaram de fora, como as chaminés de um navio afundado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário